segunda-feira, 27 de junho de 2011

O sonho de uma viagem longa de trem no Brasil

VALE JÁ TERIA ADQUIRIDO NOVOS TRENS, MAIS MODERNOS, PARA 2014
Apenas uma linha de trem de passageiros tem viagem regular e diária no Brasil. Ela liga Belo Horizonte (MG) a Vitória, no Espírito Santo. Na verdade o terminal está em Cariacica, Grande Vitória. E para este passeio de incríveis 12 a 13 horas de duração é que se voltam as atenções dos verdadeiros amantes das ferrovias. O serviço do trem é explorado pela Vale (ex-Vale do Rio Doce), que terceiriza a operção para uma empresa da região. A viagem tem um toque de assustador, de aventura e de emoção. É uma pequena resistência do que tivemos no passado no país, com centenas de linhas férreas de passageiros cruzando o nosso país continental. A novidade é que a Vale já teria comprado novas locomotivas mais modernas para colocar na linha, segundo informou um dos funcionários à bordo, mas que a Empresa pretende por em uso somente para a Copa de 2014. Fico em dúvida se esta linha atrairia turistas, especialmente estrangeiros. Para mim ficou muito clara a ideia de que a linha BH x Vitória é hoje uma migalha oferecida pela maior exportadora brasileira, uma espécie de compensação social proporcionada às comunidades por onde circula e aos seus próprios funcionários.
IMAGEM da saída em Belo Horizonte

Depois de alguns anos de vontade de fazer a viagem de trem entre Belo Horizonte e Vitória, o fato foi consumado em 17 de fevereiro de 2011. É preciso que se diga que o agente motivador foi o concurso Você nos Trilhos edição 2010, promovido pelo Clube Amantes da Ferrovia, no qual ficamos com a segunda colocação e ganhamos um bilhete para cada um dos quatro passeios de trem turísticos operados pela Serra Verde Express, esta fantástica empresa sediada em Curitiba que proporciona aos amantes das ferrovias emoções inigualáveis.
Solicitamos informações aos amigos do Clube, e cuidadosamente montamos um projeto de viagem para eu e minha filha Geórgia. Aproveitando uma viagem de seis dias, nos preparamos também para conhecer ao menos algumas atrações de três capitais brasileiras: Belo Horizonte, Vitória e Rio de Janeiro.
Fui alertado para o risco de não obter lugar na hora do embarque. Mas os bilhetes não são comercializados por agências de turismo e nem pela Internet. Só nas estações localizadas de BH a Vitória. Tivemos que recorrer a colegas jornalistas de Belo Horizonte.

REPORTAGEM
Na condição de jornalista e trabalhando numa revista do setor elétrico do Rio Grande do Sul, desenvolvemos o hábito de transformar todas as nossas viagens interessantes em matérias, compartilhando com os leitores. Assim, entramos em contato com a Serra Verde, em Vitória, onde recebemos atendimento exemplar por parte do Tiago, com todos esclarecimentos sobre a região e dobre o passeio de trem de luxo Litorina entre Viana e Araguaya, que recebemos de prêmio. Informado sobre nosso projeto de reportagem, até disponibilizou estrutura de transporte e guia para ampliarmos o trabalho, destacando também o forte tema do turismo regional.
A mesma sorte não tivemos na empresa Vale (ex-Vale do Rio Doce). Solicitamos autorização para fazer uma reportagem sobre a viagem de trem, e igualmente solicitamos suporte técnico de informações sobre a linha. Depois de contatos por e-mail, fomos informados por telefone por sua assessoria de imprensa em Minas Gerais que a Vale tem por norma não manter relações com entidades sindicais, e já que a revista Ligação Direta é editada por um sindicato, a relação estava sendo desfeita. Esta foi a posição fria da empresa que assumiu o posto de maior exportadora do país, desbancando a Petrobras, e que é responsável pela exploração de minérios a céu aberto, produtos naturais finitos que seriam um patrimônio do país e dos brasileiros, mas que no período de “doação” das nossas estatais caiu nos braços de uma empresa privada.
IMAGEM de algumas das minas de exploração a céu aberto

A SAÍDA
Feito este comentário em visível tom de desabafo e tristeza, acabamos viajando no trem das 7h30 da quinta-feira 17 de fevereiro. Os passageiros vão chegando à Estação. Carregam malas, sacolas, caixas. Bagagens bonitas e feias. Tem de tudo. Muita gente simples do interior, que se dirige aos vagões da segunda classe. Na entrada da Estação Ferroviária, agentes possivelmente do Juizado de Menores pedem os documentos dos menores de 18 anos, como foi o caso da Geórgia.
Tudo resolvido, passamos à área de embarque. Cerca de doze vagões estão perfilados. Descobri ao final do comboio tem mais dois vagões extras, exclusivos aos funcionários da Vale, preparados para trabalhos durante a viagem. Dispõe de camas, espaço para refeições, área de reuniões com projetores, telões, internet e demais itens. Seus ocupantes ficam isolados do restante dos vagões.

R$ 75,00 POR PESSOA
Optamos pelos vagões com ar-condicionado, que custam R$ 75,00. São os primeiros do comboio. Os comuns custam R$ 50,00 por não terem ar. Estão localizados da metade para o final. O divisor é o vagão restaurante. Não entendemos por que tanta diferença no preço apenas pelo ar-condicionado. Toda composição deveria ter este conforto.

IMAGEM do interior do vagão de primeira classe

É um dia ensolarado e quente. Às 7h já marca 25 graus. Logo que entram no tem, alguns casais já se abrigam com cobertores de lã. Imaginei o que fariam eles em Gramado (RS) no inverno. A temperatura interna está por volta de 18 graus. Uma hora depois coloco uma jaqueta fina, a única que levei, mas mais do que suficiente para o “inverno” a bordo.
Compramos propositalmente assentos do lado direito, prevendo que as estações estariam no lado direito, e queríamos observar o movimento. Ledo engano. As estações ocorrem também do lado esquerdo. E poucas são atrativas como ponto turístico. A maior parte das 26 estações são constituídas de pequenos prédios ou cabines. Em alguns, nem isso. O maquinista faz coincidir a posição da segunda classe nas estações.
Nosso vagão parte com cerca de 50% de ocupação. O trem roda devagar, a uns 50 ou 60 km no máximo. A primeira parada ocorre em 30 minutos de viagem. As paradas duram de um a três minutos, dependendo do tamanho e do movimento. Geralmente sobem poucas pessoas. O trem já para com a segunda classe posicionada na Estação. Como nosso vagão era o segundo depois da locomotiva, ficamos sempre bastante longe do movimento de passageiros.

PROIBIDO FUMAR E BEBER
É proibido fumar nos vagões e naqueles espaços que ligam os vagões. Beber qualquer bebida alcoólica também não pode. Um funcionário informou que se alguém for pego bebendo, será convidado a descer na estação seguinte.
IMAGEM do comboio parece interminável

LANCHES, CAFÉ E ALMOÇO
A locomitiva segue seu tranco. A cada meia hora passa o rapaz que vende refrigerantes, água, guloseimas, bolachas, lanches, café e café com leite. Por sinal, o café é muito bom e bem quente. Da marca Três Corações. Os preços são bons. Cafezinho custa R$ 0,50 e com leite R$ 1,00. Fui conhecer o vagão cozinha, onde é preparado. A estrutura é boa, toda metálica, que me lembrou a cozinha da escola do secundário, em Erechim, RS. Não perde aquele cheirinho meio estranho. Lá pelas 11h são recolhidos os pedidos para almoço. Se decidir pelo almoço, a única opção é escolher a carne: assado de gado ou de frango. Os acompanhamentos são purê de batatas, feijão carioca, arroz e legumes cozidos, servidos numa bandeja de alumínio descartável, com tampa lacrada. O valor é de R$ 8,00. Não é muito prático pela falta da mesinha semelhante à dos aviões. Foram tiradas por que causavam transtornos, já que as poltronas inclinam bastante. Pode-se comer colo mesmo, com garfo e faca de plástico, ou ir no vagão lanchonete, que tem cerca de 40 lugares. Quase todos optam para comer no próprio lugar. Mas muitos não pedem almoço, e comem lanches comprados ou trazidos de fora. Nossa comida estava morna, quase fria.

CORREDOR EXPORTADOR DE MINÉRIOS
A cada instante cruzamos com imensos comboios de vagões de minérios que seguem rumo ao porto de Tubarão, em Vitória. Muitos comboios param para dar passagem ao trem de passageiros.
Ao nosso lado seguia uma família de um funcionário da Vale, que pela primeira vez iriam ao litoral. As duas crianças estavam ansiosas pelas emoções do mar que lhes esperavam. Por ser funcionário, a Vale concede os bilhetes gratuitamente.

IMAGEM dianteira do comboio em meio às belas paisagens

Até por volta das 15 horas, o trajeto do trem é bastante sinuoso. Por diversas vezes fui ao espaço entre os vagões para apreciar paisagem sem precisar olhar através da janela lacrada. É muito gostoso sentir a brisa. No início da tarde o calor está muito forte. Os vagões sem ar devem estar parecendo fornos.
No meio do caminho troca a tripulação. Me informaram que todo pessoal do trem reside na cidade. Esta seria a exigência da empresa terceirizada que opera os trens. Assim, os funcionários dormem uma noite em casa e na seguinte em Vitória ou Belo Horizonte.
Ganhamos um rio como acompanhante de viagem. É o rio Doce que aos poucos vai ganhando corpo. Está no lado direito mas a certa altura cruzamos uma ponte e muda de lado. Já está bem largo, cerca de 300 metros.
IMAGEM mostra que ganhamos a companhia do Rio Doce


VEGETAÇÃO E ESCASSAS FRUTÍFERAS
Observo a plantação que existe ao redor da ferrovia. Só vejo quase árvores de sombra, já que bananeira e mangueira não conta, por que nascem sozinhas. Algumas poucas goiabeiras, também nativas. Parece que a população desconhece horta.
Por duas ou três vezes aparece um fiscal que faz a conferência dos bilhetes.
Um serviço de auto-falantes vai informando a sequência de paradas, repetindo duas vezes cada uma, e alertando para os cuidados que os passageiros devem ter no trem.

FIM DA VIAGEM
Começa a anoitecer e vamos nos preparando para a chegada, anunciada para as 20h30. A paisagem ganha bonitos contornos de luzes diferentes. A estação final, no município de Cariacica, grande Vitória, se enche de passageiros com suas malas e sacolas, crianças, idosos, taxistas disputando passageiros. Uma gritaria. Nenhuma estrutura para receber os turistas que ficam meio perdidos entre os passageiros. Mesmo com tanta gente chegando no trem, não há serviço regular de transporte para Vitória ou Vila Velha. Li em blogues que teriam vans oferecendo o transporte. Neste dia não havia nenhuma. A solução acaba nos táxis. Eles cobram por pacote acertando um preço. Um taxista pediu 25 reais para nos levar até um hotel em Vila Velha, algo em torno de 10 km. Ofereci 20 reais e ele topou.

UM SONHO E UMA ESPERANÇA
A impressão que ficou foi muito boa. Boa pela simpatia que temos pelos trens. Boa por não ligarmos para eventuais contratempos. Boa pela necessidade de difundir e defender a volta dos trens, a exemplo da Itália e demais países europeus onde funcionam maravilhosamente. Estamos muito longe, certamente. Mas é um sonho. Eu prefiro sonhar. E torcer.

MAIS IMAGENS:

MINHA parceira de viagem, a filha Geórgia
VAGÃO de segunda classe


COMBOIO chegando a uma estação
BELAS paisagens acompanham a ferrovia
CRUZAMENTO sem cancela, como em todo o país
HORA do almoço. Optamos por ficar no próprio banco

BILHETE e orientações aos passageiros